As Doceiras Magalhães
Luciana Matos é um dos rostos da quarta geração de uma respeitada família de doceiras do lugar de Ponte da Chã, em Lobão, no nordeste do concelho da Feira – as Magalhães –, que souberam preservar os saberes e sabores da genuína Regueifa Doce, iguaria muito cobiçada ao longo de todo o ano, em particular na altura da Páscoa. Uma herança secular, transmitida de geração em geração, de mãe para filha.
Luciana conta que foi a bisavó Maria quem transmitiu à filha, também Luciana, a arte e os segredos de bem fazer a Regueifa Doce, legado que, por sua vez, esta passou à filha Lurdes, que foi preparando a pequena Luciana para assumir a continuidade desta tradição familiar. E assim aconteceu. Desde os 12 anos que não conhece outro ofício, tendo assumido o negócio da mãe, Lurdes Magalhães, há quatro. O seu braço direito é a irmã Fátima, mas o marido e os dois filhos completam a equipa que assume todas as áreas do negócio.
Na Rua de S. Tiago, no lugar de Ponte da Chã, há três casas de Regueifa Doce, todas ligadas à família Magalhães – a Pastelaria Lurdes Magalhães, a Doçaria Laidinha Magalhães e a Padaria Celeste Magalhães –, mas Luciana faz questão de acrescentar que a Casa Topa, na Corga de Lobão, também preserva a mesma origem familiar, tal como as pastelarias Gula dos Anjos e Laurita, ambas em Fiães. E admite que sejam mais as ramificações desta família por outras freguesias limítrofes.
Há muito que os doces Magalhães ultrapassaram as fronteiras de Lobão e do concelho de Santa Maria da Feira. Desde as montanhas do Paiva ao litoral do distrito de Aveiro, as doceiras desta família sempre percorreram feiras e mercados, festas e romarias, adoçando o palato de uma clientela fidelizada.
Luciana não tem dúvidas de que a Regueifa Doce é um produto com enorme potencial gastronómico e turístico para a sua freguesia, mas também para o concelho e região, e acredita que todos os produtores podem tirar o melhor partido desta iguaria afamada, se apresentarem um produto de qualidade.
A receita que herdou da sua mãe é respeitada na íntegra. Farinha, água, ovos, açúcar, manteiga, fermento e sal são os ingredientes que servem de base a este pão doce. Depois acrescenta-lhe canela e raspa de limão a gosto. Garante que a qualidade dos produtos, a forma de trabalhar a massa e o tempo de cozedura são os requisitos para um pão doce de excelência.
Longe vão os tempos em que as doceiras de Lobão percorriam dezenas de quilómetros a pé, com os tabuleiros à cabeça carregados de doces, com destino às romarias da região – a Nossa Senhora da Laje, na Serra da Freita (Arouca), a Santa Eufémia, em Castelo de Paiva, ou a Nossa Senhora da Saúde, em Vale de Cambra –, mas há memórias e costumes que perduram.
Manda a tradição que, por altura da Páscoa, as matriarcas cozam uma fornada de Regueifa Doce para distribuir pela família, em especial pelos filhos e afilhados. Ainda hoje assim acontece. Muitos clientes de longe foram adotando este ritual e continuam a oferecer a Regueifa Doce como “folar” da Páscoa aos familiares e amigos.
Na Rota da Regueifa Doce –Talhar o Fastio
Estamos em 1896, final do século XIX, mais precisamente no dia 4 de junho. As gentes da Vila da Feira acompanham a Procissão do Corpo de Deus e, como manda a tradição, a imagem de roca de São Cristóvão percorre ruas e travessas, com paragem obrigatória nos lugares mais emblemáticos da terra.
No claustro do Convento dos Lóios, o povo rodeia a imagem imponente do santo, com mais de dois metros e meio de altura, que ostenta oferendas de mães angustiadas com o fastio dos filhos. São regueifas doces, presas à cintura de São Cristóvão, que hão de devolver o apetite aos catraios debilitados.
Pela vila diz-se que a crença é remédio santo. Basta embeber um pedaço de regueifa em vinho tinto e passá-lo depois pelas mãos do santo, antes de ser ingerido pelos pequenos enfermos e progenitoras devotas. Promessa cumprida!
A história associada à Procissão Corpo de Deus está registada em atas de sessões camarárias da época e em publicações de historiadores locais, sem esquecer as fontes orais da terra, que foram transmitindo memórias dos seus antepassados de geração em geração.
A regueifa doce, tal como a regueifa branca ou azeda, é referenciada como oferenda, assente numa crença intimamente ligada ao culto a São Cristóvão e à Festa do Corpo de Deus, acontecimento anual de grande importância para as gentes da Vila da Feira e de todo o país.
Uma vez por ano, a imagem de São Cristóvão deixava a Igreja da Misericórdia e saía à rua para se juntar ao povo e incorporar a Procissão do Corpo de Deus, com a imponência que ainda hoje mantém, tal como se mantêm as mãos enegrecidas do santo, tingidas pelo vinho tinto que outrora embebera pedaços de regueifa, abençoados com um toque singelo.
O homem que transportava e manipulava a imagem de roca do santo era nomeado em sessão camarária, e a tarefa exigia arte e engenho. Falamos de uma estrutura de madeira articulada, com mais de dois metros e meio de altura, que não deixava ninguém indiferente à sua passagem. Uma tendência da estatuária religiosa, característica do período barroco espanhol, que poderá ser apreciada e venerada na Igreja da Misericórdia.
O livro “Quatro Séculos de História – Vila da Feira: a Praça Velha”, de Roberto Vaz de Oliveira, reconhecido historiador feirense, regista e perpetua aspetos relevantes desta e de outras tradições locais, que vale a pena conhecer e explorar.
A fotografia que deu origem a esta narrativa – captada há 125 anos – pertence ao arquivo pessoal do historiador feirense Roberto Carlos Reis, que connosco partilhou outras imagens do mesmo acontecimento, com as marcas naturais que o tempo deixou, mas de uma beleza e intensidade admiráveis.
Outras imagens de arquivo:
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